Onde mora o perigo??
A miséria é triste na televisão, mas é tolerável. (Afinal, aperta-se um botão e muda-se imediatamente para um documentário sobre Hollywood ou os leões-marinhos da Patagônia.) A miséria nas esquinas distantes é triste, mas tolerável. (Afinal, basta não olhar para o lado.) Mas a miséria assim, debaixo dos nossos narizes é insuportável. Afinal, não dá para mudar de canal.
O pessoal do prédio ao lado (um desses modernos, com cerca eletrificada, câmeras, sabe?) formou uma associação. Mandaram uma circular para todos da região. Entre os objetivos, vagos e abstratos, que deveriam ser atingidos pelo grupo, havia um que me chamou a atenção: “reurbanização do viaduto”. Leia-se: expulsar esses miseráveis do nosso raio de visão e garantir que não voltem nunca mais.
Não sei como fizeram, mas da noite pro dia, os mendigos sumiram. Os comerciantes da região pagaram a reforma do local e, onde antes ficavam os mendigos, fizeram belos canteiros. Além dos canteiros, a comissão contratou um segurança, que fica de lá pra cá na rua, 24 horas. O bairro respirou mais aliviado. Até a semana passada...
Terça-feira, 9h da noite. Ouço gritos desesperados. Saio de casa, ao mesmo tempo em que quase todos os meus vizinhos. Os gritos vinham do prédio ao lado (o mesmo que criou a associação). “Chama a polícia! Ele ta matando ela! Socorro!”
A polícia chega e entra no prédio. A população de curiosos (eu lá no meio) espera no meio da rua. O criminoso sai acompanhado por três policiais. É branco, grisalho, veste calça social , camisa azul e gravata. As coisas começam a fazer sentido. A voz que gritava era da filha. O pai, encolhido no camburão, estava espancando a esposa. Segundo os vizinhos, não era a primeira vez. Mas essa noite devia estar com o humor abalado e tentou matar a mulher, sufocando-a.
Não sei que fim levou a história. Não tenho idéia se o covarde está agora num flat, na casa de um irmão ou se, enquanto escrevo esta crônica, dorme tranqüilamente ao lado de sua refém, perdão, esposa. Os mendigos foram expulsos e não sei se agora então vivos, mortos ou se, enquanto escrevo essa crônica, dormem em baixo de algum viaduto. Se dormem, dormem um sono pouco tranqüilo. estamos todos preocupados com a violência, eles também. Afinal, a qualquer hora podem chegar os capangas, uniformizados de seguranças particulares, e enxota-los daquele lãs improvisado.
e se na verdade, pensando que estamos nos protegendo, estivermos atacando? E se, na verdade, nós formos os perigosos? Quando o camburão, levando o belo pai de família, cruzou com os belos canteiros, essas idéias me vieram à cabeça. Alguma coisa está bem errada, né? Ou você acha que tá beleza?
(por Antonio Prata, revista Capricho, 23 de setembro de 2001)